Luis Filipe Caivano nasceu em São Paulo, é um pouco mais velho do que gostaria e escreve porque não sabe desenhar. Foi quarto colocado na categoria crônica e finalista na categoria poesia do Prêmio Off Flip de Literatura 2021. Escreve mensalmente para a Aboio.
Gabriela Caivano mora em São Paulo e estuda psicologia. Desenha desde pequena e na pandemia começou a se dedicar mais à ilustração para se distrair do fato de que mora no Brasil.
Recentemente, coisa de dois meses atrás, viralizou no Twitter um print de um post do LinkedIn (perdoai-me, Camões) no qual uma jovem agradecia efusivamente, com hashtags, emojis, enfim, pacote completo, sua empregadora, uma gigante do ramo de tecnologia, por ter lhe proporcionado um tour por nada mais, nada menos, do que Veneza.
Naturalmente, minha reação inicial foi duplamente invejosa. Primeiro porque a autora da postagem possui um emprego formal, o que por si já a coloca num patamar superior em relação a mim e a aproximadamente 15% dos brasileiros de acordo com os dados mais recentes do IBGE, e, em segundo lugar, porque este mesmo emprego lhe garantiu uma viagem para Veneza. Veneza, a Rainha do Adriático, La Dominante, a Cidade dos Canais que os turistas podem percorrer em um romântico passeio de gôndola pela bagatela de oitenta euros (aproximadamente um salário mínimo na cotação atual). Enfim, uma viagem para Veneza bancada pela empregadora. Ponto para o capitalismo.
Ao contrário da minha dor de cotovelo, contudo, o tom preponderante nos comentários do Twitter era mais irônico e debochado do que de costume, o que me levou a reexaminar a imagem com um pouco mais de atenção. Foi só então que entendi a razão de ela ter viralizado em primeiro lugar. Logo abaixo da linha em que escreve “mano, a firma levou o time pra uma tour em VENEZA”, a garota elabora um pouco mais a incrível experiência de conhecer a Cidade Flutuante, afirmando que “mesmo virtualmente a sensação foi de que estávamos realmente andando de barco e caminhando pelas calçadas [coraçãozinho laranja]”. “Mesmo virtualmente”. Em outras palavras, a empresa, do alto da sua magnanimidade, basicamente abriu o Google Street View, posicionou o bonequinho laranja em Veneza e compartilhou a tela com os funcionários, e pelo menos um deles julgou que o gesto era merecedor de um emocionado post de agradecimento público.
Além de escancarar o ethos subserviente (leia-se puxa-saquista) e a gramática profundamente descolada da realidade que fazem com que o LinkedIn se assemelhe a uma rede social na qual robôs tentam se passar (sem sucesso) por seres humanos profissionalmente realizados, o episódio remeteu-me imediatamente a um dos meus filmes favoritos. Lançado em 1990 e dirigido por Paul Verhoeven, O Vingador do Futuro introduz-nos a uma sociedade futurista na qual, entre outras ambiguidades decorrentes do clássico binômio “avanço tecnológico x capitalismo selvagem”, empresas como a Rekall, Inc. oferecem às pessoas menos abastadas ou incapazes de viajar por qualquer razão a possibilidade de vivenciar férias agradáveis sem sair de casa através de implantes de memória. Para garantir que os clientes realmente acreditem terem feito um cruzeiro por Saturno ou, sei lá, um tour por Veneza bancado pela firma, todas as lembranças referentes à contratação do serviço em si são sumariamente apagadas quando da realização do implante. Além disso, por um módico valor adicional, a empresa ainda providencia fotos e souvenires da viagem que teoricamente nunca aconteceu, ao menos não no plano em que convencionamos chamar de real.
Apesar do belíssimo show pirotécnico e dos efeitos especiais de primeira, O Vingador do Futuro é essencialmente uma obra que trata das permeáveis fronteiras entre realidade e memória. Melhor dizendo, o filme é as duas coisas ao mesmo tempo, espelhando um roteiro que opera simultaneamente em dois níveis sem que nunca tenhamos a certeza de qual deles é de fato o real. Isso porque Douglas Quaid, nosso protagonista dono de um inexplicável e por vezes ininteligível sotaque austríaco cortesia de Arnold Schwarzenegger, é vítima de um implante defeituoso da Rekall que o leva a questionar sua própria identidade. Ou, quem sabe, ele na realidade está apenas recebendo aquilo pelo que pagou, uma vez que ele é convencido a adquirir um pacote especial que lhe permite assumir a identidade de um agente secreto durante a “viagem” para Marte.
Se Quaid acredita que de fato foi ao Planeta Vermelho para desvendar uma conspiração intergaláctica envolvendo mutantes e alienígenas, se a menina do LinkedIn crê com todas as forças que foi à Veneza nas asas da benevolência de seu empregador, por que isso seria um problema? Trata-se de crimes sem vítimas, certo? Mais ou menos.
Além de ser um excelente produto de entretenimento e de uma reflexão acerca da natureza da realidade, O Vingador do Futuro possui uma terceira camada que é política. Isso, sem dúvidas, se deve em grande medida ao fato de que o roteiro do longa foi adaptado de um conto de Philip K. Dick, autor também responsável pelas histórias nas quais se basearam filmes como Blade Runner (1982), Minority Report (2002), O Vidente (2007), entre muitos, muitos outros. Não seria exagero dizer que a ficção científica contemporânea de Hollywood foi direta e tematicamente moldada por K. Dick e por suas inquietações metafísicas e político-sociais. A capacidade que o autor tinha de combinar questionamentos profundamente filosóficos com reflexões concretas sobre a sociedade norte-americana é perfeitamente traduzida e aproveitada em O Vingador do Futuro, apesar de o roteiro do longa ser muito diferente do conto que o originou.
Aqui vale lembrar que Quaid, um pedreiro, um trabalhador braçal, recorre a um modo artificial de realizar seu sonho porque isso lhe é inacessível na sociedade em que ele vive. Mais do que isso, por estar profundamente alienado da sua própria existência, o vendedor da Rekall não tem dificuldades em fazer com que o protagonista se interesse por duas semanas de “férias de si mesmo”. Ou seja, até mesmo sua alienação é capitalizada e rentabilizada pelo sistema que o coloca numa posição intolerável em primeiro lugar. Ao invés de buscar soluções para problemas como mudanças climáticas e a brutal desigualdade que assola o planeta, a lógica do sistema em que vivemos – e que é elevada alguns graus em O Vingador do Futuro – opera sempre na chave de tornar o insustentável tolerável. Se a temperatura da Terra sobe em um grau, produz-se um ar-condicionado mais barato; se viajar se torna muito caro, cria-se implantes de memória para que pessoas como Quaid possam conhecer Marte (ou Veneza) sem que de fato o façam. Não é mera coincidência o fato de K. Dick ter batizado a história da qual nasceu o filme de “We Can Remember It for You Wholesale” (às vezes traduzido como “Podemos Recordar para Você, por um Preço Razoável”).
É verdade que agora, em plena pandemia, mesmo quem tem muito dinheiro não conseguiria passear por Veneza de outro modo que não virtualmente. A questão em si não é o “tour” promovido pela empresa, mas sim a reação desmedida da empregada, que evidencia ou uma profunda ingenuidade ou, mais provavelmente, um cinismo motivado pelo desejo de aparecer e se destacar no feed da sua rede no LinkedIn. Diferentemente dos clientes da Rekall, tudo nos leva a crer que a autora da postagem tem plena consciência de que não esteve verdadeiramente na Itália, sua confusão, mais abstrata e por isso mais profunda, parece ser entre seu papel enquanto empregada e sua identidade. O LinkedIn é pródigo em exemplos dessas pessoas cujo alicerce da personalidade é pouco mais do que os postos de trabalho que ocupam, de empregados que “vestem a camisa” da empresa até para dormir. No fundo, este é apenas outro sintoma da contaminação de todas as esferas da existência humana pela lógica capitalista de produção, segundo a qual mesmo trabalhadores muito bem remunerados são levados a abdicar de quase tudo o que não guarde relação direta com seus respectivos empregos. Até o ócio, quando existe, precisa ser acompanhado de um qualificativo legitimador: criativo, produtivo, monetizável.
Provavelmente em razão de ter vivenciado de perto os horrores do nazismo em sua nativa Holanda quando criança, todas as incursões de Verhoeven pela ficção científica são, cada uma à sua maneira, caracterizadas por uma linguagem pop aliada a um ideário antissistema raras vezes tão escancarado em filmes hollywoodianos. Em RoboCop (1987), a polícia é privatizada e instrumentalizada pela megacorporação que assume seu controle. No brutalmente sutil Tropas Estelares (1997), por sua vez, o diretor faz com que torçamos por um governo fascista ao longo de todo o filme, algo que até hoje não é percebido por muitos espectadores. Em O Vingador do Futuro, este viés iconoclasta que também pode ser parcialmente atribuído a seus dois principais roteiristas, Dan O’Bannon e Ronald Shusset1, manifesta-se, além do que já foi colocado acima, sobretudo na dinâmica político-social de Marte.
No longa, o planeta é uma colônia de exploração do metal fictício turbinium, elemento do qual são feitos os satélites bélicos dos quais depende o bloco Norte na sua perpétua guerra contra o bloco Sul, conflito que nos é apenas sugerido em diálogos e informações pontuais distribuídas pela narrativa. Fazendo jus ao espírito do colonialismo, as condições de vida em Marte são tão insalubres que muitos dos seus habitantes nascem com mutações horrorosas que, ironicamente, lhes dão poderes telepáticos que são fundamentais para que, ao final do filme, Quaid consiga fornecer ar para o planeta todo. Isso porque, até então, mesmo o suprimento de oxigênio do planeta estava sob poder do administrador de Marte e vilão do filme, que não hesita em cortá-lo de toda uma região densamente ocupada sob pretexto de matar os rebeldes que lutam por causas absurdas como liberdade, dignidade e ar respirável para todos.
Em que pesem os trinta anos que nos separam de sua bem-sucedida estreia, O Vingador do Futuro segue como um retrato extremamente fiel de uma sociedade completamente acomodada em suas infinitas contradições que apenas se acentuaram com a passagem do tempo. Tamanho é nosso grau de reificação que cada avanço tecnológico e cada nova descoberta científica parecem tornar as coisas ainda mais como elas já são. Logo, por mais que implantes de memória como os mostrados no filme pareçam um tanto esdrúxulos, o conceito por trás deles, o princípio que os rege, é extremamente crível e próximo de nós.
Mesmo com a entrada dos créditos finais nem Quaid e nem nós podemos dizer se todos os eventos que se seguem à ida do protagonista à Rekall de fato aconteceram ou se, nas palavras de alguns personagens, ele está passando por uma “embolia esquizoide”, uma vez que vários dos acontecimentos da trama são estranhamente parecidos com as reviravoltas do pacote de agente secreto que ele adquiriu da Rekall. Há, porém, inúmeros indícios de que a história está de fato apenas se passando na cabeça do protagonista. Se esse for de fato o caso, o final do filme é melancólico. Incapaz de diferenciar o mundo real de suas memórias corrompidas, Quaid sofre uma lobotomia e presumivelmente fica em algo próximo a um estado vegetativo pelo resto da vida.
Em outras palavras, O Vingador do Futuro é a tragédia de um operário que, incapaz de tolerar a própria existência vazia, recorre a um serviço, que é produto e causa deste mesmo sistema, para aliviar o peso da alienação e acaba tendo parte do cérebro cirurgicamente removida – e, se eu tivesse que apostar, diria que sua esposa não receberá um centavo de indenização por isso. Com este cenário desolador, podemos apenas torcer para que mesmo lobotomizado Quaid não cometa atos extremos como agradecer publicamente à Rekall pelas férias maravilhosas em Marte que a empresa lhe proporcionou. Talvez seja uma moral, talvez seja apenas a vida como ela é.
[1]: Duplinha também responsável pelo roteiro de “Alien, o Oitavo Passageiro”, outro filme que também funciona tanto como entretenimento de primeira quanto como uma crítica ao capitalismo desumanizador.
Ilustração de Gabriela Caivano.